Sobretudo a Agonia

Ao longo dos anos fui tomando contacto com livros, filmes e músicas que foram funcionando como um cheiro que activava em mim memórias órfãs de Angola e de conflitos familiares. Filho de um ex-combatente do exército colonial português, nasci em 1973 numa Angola em guerra que abandonaria pouco tempo depois, em Janeiro de 1976, e uma fatia significativa do meu passado são silêncios e ausências. Por isso mesmo, em palavras alheias fui-me descobrindo como se através delas pudesse recuperar uma memória desse meu passado difuso de um modo mais coerente e rico do que se me esforçasse por fazê-lo sozinho. A verdade é que em palavras que não são minhas descobri também a minha voz, resultando este livro numa manta de retalhos entre aquilo de que tenho memória, as memórias de família que me foram transmitidas, e as memórias de tantos que escreveram sobre a guerra nesta ex-colónia portuguesa com pinceladas tão tangentes com o meu passado. No fim, deste exercício de construção de uma memória de guerra particular restaram ainda alguns silêncios incomodativos. Muitos desses decidi preenchê-los com a imaginação, porque acredito que aquilo que eu ficcionar hoje será, hoje ainda, uma parte da minha memória tão real quanto qualquer outra. Outros optei por esquecê-los em definitivo, porque água de colónia são também as lágrimas caladas de quem tem memória.